domingo, 13 de maio de 2012

Noites em Branco - Marco?


            Os fulgurantes raios de sol, envolventes e húmidos, irrompem quarto a dentro e, por entre as persianas de madeira de um verde velho e gasto, deixam adivinhar mais um dia acolhedor e fervilhante, um dia ameno de Verão insular. A pouco e pouco o quarto acorda e, ao acordar, mergulha num brando e cativante mar de ócio e tranquilidade. O “tic-tac” do relógio marca, sonolento, o ritmo de um quarto rendido à eternidade, livre dessa fatalidade humana que é o tempo. Tudo parece balançar, do candeeiro que pende do alto tecto de casa centenária, às ripas de madeira que remanescem no soalho e fazem lembrar o convés de uma embarcação, qual caravela quinhentista. Nas paredes, as fotografias e os retratos fitam, serenos, o que os rodeia. Despem o quarto da sua privacidade. Porquanto, a cómoda datada, ao estilo dos anos cinquenta, o espelho que a encabeça, a frágil caixa de música em cristal e a escova de cabelo, empoeirada, gasta, quieta, formam um só ser. Um ser que, enquanto espectador privilegiado da intimidade da alcova, reclama atenção e comete inconfidências - confere ao espaço um sabor a prevaricação e intriga.
Eventualmente Marco levanta-se. Do alto do seu metro e setenta de altura, sob o emaranhado do seu cabelo ondulado e de uma testa de tez morena e pouco marcada, Marco denuncia a força da sua juventude. Os seus olhos, num tom de amêndoa aveludado e profundo, observam-se a eles próprios no espelho, como que certificando a identidade do corpo a que pertencem. Marco veste o roupão e sai do quarto. Segue, ainda pouco desperto, a passadeira daquele longo corredor que se apresenta agora, ante os seus olhos, como a antecâmara do mundo real, o espaço ideal para fazer essa transição do aconchego da noite para o frenesim do dia. Marco acende um cigarro que preparara na última madrugada, um cigarro de um qualquer vulgar tabaco de enrolar. Num gesto natural, quase inconsciente, leva-o até à boca. A clarabóia rasga a dormência daquele espaço interior que se alonga, austero, a todo o comprimento da casa. Alguns metros mais à frente, oposta à grande janela que põe fim à salubridade luminosa que impera naquele obstinadamente longo corredor, surge uma porta aberta. Do outro lado da porta, a estreita casa de banho, ao estilo Art Déco dos anos 20, dominada pelo xadrez dos mosaicos e a elegante banheira de linhas rectas onde, tentando adaptar-se à luz, Marco se prepara para mais um dia, talvez o último, num clima tropical. Depois do banho, ao barbear-se, volta a perder-se nos seus grandes olhos, quais doces amêndoas reflectidas no espelho. A sua mente é deixada à deriva por alguns momentos. Marco rasga então o silêncio que até aí o acompanhara com um libertador “Foda-se” no momento em que desfere um pequeno golpe no seu pescoço depois de um gesto mais brusco com a lâmina de barbear. As gotas de sangue que pingam compassadas fazem lembram a cadência do relógio, “tic-tac” ,“tic-tac”.
A cozinha é local de passagem antes do pátio onde toma a primeira refeição do dia. O negro do basalto e o denso e sombrio verde da vegetação circundante contrastam com a claridade exterior e a brisa marítima. Os raios de sol dispersam-se por entre as partículas de água em suspensão. São dez horas da manhã e a temperatura deve rondar os 25º. Marco desfruta de uma chávena de café, sentado a uma mesa de jardim, em ferro forjado, que se confundo com o cenário. Marco tem 32 anos, fará em breve 33.
De momento, bebe o seu café e vai dedilhando, calmamente, o objecto de aço inóspito e frio que segura na sua mão direita. Memórias distantes de uma infância prematuramente interrompida e ingenuamente feliz circulam na sua mente. O indicador desliza até ao gatilho e o punho cerrado sobe à altura da têmpora. Marco fecha os olhos e solta uma gargalhada ao ser invadido por outra referência da sua infância, o odor da brisa marítima misturado com o aroma das flores insulares. Subitamente, a tranquilidade do burburinho matinal é interrompida - o estrondo que segue o premir do gatilho é implacável e, no ar, vive agora o cheiro a pólvora queimada e um silêncio mortificador. O tempo pára. O corpo de Marco, caído no chão, imóvel, junto à mesa onde tomava o pequeno-almoço começa a formar um mar de sangue. Mar esse, onde desagua um rio rubro que transporta a pouca vida que restava dentro do corpo daquele eterno jovem. Um sorriso tranquilizante domina a sua expressão. Marco fora, melhor, Marco é agora verdadeiramente feliz.