Os fulgurantes raios de sol,
envolventes e húmidos, irrompem quarto a dentro e, por entre as persianas de
madeira de um verde velho e gasto, deixam adivinhar mais um dia acolhedor e
fervilhante, um dia ameno de Verão insular. A pouco e pouco o quarto acorda e,
ao acordar, mergulha num brando e cativante mar de ócio e tranquilidade. O “tic-tac”
do relógio marca, sonolento, o ritmo de um quarto rendido à eternidade, livre dessa
fatalidade humana que é o tempo. Tudo parece balançar, do candeeiro que pende
do alto tecto de casa centenária, às ripas de madeira que remanescem no soalho
e fazem lembrar o convés de uma embarcação, qual caravela quinhentista. Nas
paredes, as fotografias e os retratos fitam, serenos, o que os rodeia. Despem o
quarto da sua privacidade. Porquanto, a cómoda datada, ao estilo dos anos
cinquenta, o espelho que a encabeça, a frágil caixa de música em cristal e a
escova de cabelo, empoeirada, gasta, quieta, formam um só ser. Um ser que,
enquanto espectador privilegiado da intimidade da alcova, reclama atenção e
comete inconfidências - confere ao espaço um sabor a prevaricação e intriga.
Eventualmente Marco levanta-se. Do alto do seu
metro e setenta de altura, sob o emaranhado do seu cabelo ondulado e de uma
testa de tez morena e pouco marcada, Marco denuncia a força da sua juventude. Os
seus olhos, num tom de amêndoa aveludado e profundo, observam-se a eles
próprios no espelho, como que certificando a identidade do corpo a que
pertencem. Marco veste o roupão e sai do quarto. Segue, ainda pouco desperto, a
passadeira daquele longo corredor que se apresenta agora, ante os seus olhos,
como a antecâmara do mundo real, o espaço ideal para fazer essa transição do
aconchego da noite para o frenesim do dia. Marco acende um cigarro que
preparara na última madrugada, um cigarro de um qualquer vulgar tabaco de
enrolar. Num gesto natural, quase inconsciente, leva-o até à boca. A clarabóia
rasga a dormência daquele espaço interior que se alonga, austero, a todo o
comprimento da casa. Alguns metros mais à frente, oposta à grande janela que
põe fim à salubridade luminosa que impera naquele obstinadamente longo
corredor, surge uma porta aberta. Do outro lado da porta, a estreita casa de
banho, ao estilo Art Déco dos anos 20, dominada pelo xadrez dos mosaicos e a
elegante banheira de linhas rectas onde, tentando adaptar-se à luz, Marco se
prepara para mais um dia, talvez o último, num clima tropical. Depois do banho,
ao barbear-se, volta a perder-se nos seus grandes olhos, quais doces amêndoas reflectidas
no espelho. A sua mente é deixada à deriva por alguns momentos. Marco rasga então
o silêncio que até aí o acompanhara com um libertador “Foda-se” no momento em
que desfere um pequeno golpe no seu pescoço depois de um gesto mais brusco com
a lâmina de barbear. As gotas de sangue que pingam compassadas fazem lembram a
cadência do relógio, “tic-tac” ,“tic-tac”.
A cozinha é local de passagem antes do pátio
onde toma a primeira refeição do dia. O negro do basalto e o denso e sombrio
verde da vegetação circundante contrastam com a claridade exterior e a brisa
marítima. Os raios de sol dispersam-se por entre as partículas de água em
suspensão. São dez horas da manhã e a temperatura deve rondar os 25º. Marco
desfruta de uma chávena de café, sentado a uma mesa de jardim, em ferro
forjado, que se confundo com o cenário. Marco tem 32 anos, fará em breve 33.
De momento, bebe o seu café e vai dedilhando, calmamente,
o objecto de aço inóspito e frio que segura na sua mão direita. Memórias
distantes de uma infância prematuramente interrompida e ingenuamente feliz
circulam na sua mente. O indicador desliza até ao gatilho e o punho cerrado
sobe à altura da têmpora. Marco fecha os olhos e solta uma gargalhada ao ser
invadido por outra referência da sua infância, o odor da brisa marítima
misturado com o aroma das flores insulares. Subitamente, a tranquilidade do
burburinho matinal é interrompida - o estrondo que segue o premir do gatilho é implacável
e, no ar, vive agora o cheiro a pólvora queimada e um silêncio mortificador. O
tempo pára. O corpo de Marco, caído no chão, imóvel, junto à mesa onde tomava o
pequeno-almoço começa a formar um mar de sangue. Mar esse, onde desagua um rio
rubro que transporta a pouca vida que restava dentro do corpo daquele eterno
jovem. Um sorriso tranquilizante domina a sua expressão. Marco fora, melhor,
Marco é agora verdadeiramente feliz.